Este livro reúne seis escritos psicopatológicos e estético-críticos sobre obras de Caetano Veloso, Chico Buarque, Eugène Minkowski, Guilherme Messas, Jean Bergeret, Oliver Sacks, Roberto Benigni e Sigmund Freud. Adquira o livro.

Ficha técnica

Editora: Via Lettera
Autor: DAVID CALDERONI
Ano: 2006
Edição: 1ª

Entre conceitos e canções

Por Luiz Tatit

Um cancionista psicanalista não é nada improvável. O perito em canções normalmente divide sua atividade musical com outras bem distintas, tentando dar vazão a uma espécie de talento dispersivo que as especialidades, consideradas individualmente, jamais conseguem saturar. Já um psicanalista cancionista não é nada provável. Os temas de Freud são absorventes a tal ponto que, em geral, seus aficionados tendem a rever o mundo e os seres humanos à luz das perspectivas abertas pela teoria, deixando pouco tempo e espaço para outras modalidades de leitura e expressão.

Difícil saber se David Calderoni pertence ao primeiro ou ao segundo tipo de militante cultural. Só posso afirmar que, no seu caso, o cancionista precede cronologicamente o psicanalista, e que a existência de dois CDs recentes, reunindo suas composições, atestam que a atividade musical não esmoreceu em seu projeto pessoal. Por outro lado, tudo leva a crer que o psicanalista atualmente engloba o cancionista num cotidiano em que a reflexão e a prática de convívio com pacientes exigem do profissional um engajamento quase que ininterrupto.

Os textos aqui reunidos, porém, nos oferecem uma terceira via de interpretação. O psicanalista e o cancionista exercem funções complementares no pensamento de Calderoni. Ambos modulam os excessos que poderiam comprometer o tratamento dos temas abordados. O psicanalista lança mão de conceitos consagrados (como complexo de Édipo e transferência, por exemplo), ainda que devidamente revistos pelo autor, para delinear um parâmetro de avaliação dos objetos descritos e, com isso, abrandar a tendência dispersiva do enfoque artístico. O cancionista, por sua vez, não esconde certa “aliança” com o objeto analisado, que pode ser o discurso de um paciente, uma canção de Caetano Veloso ou o próprio compositor. Atenua, assim, a tendência centralizadora da ciência, aquela que nos dá a impressão de que o esforço para se comprovar a hipótese inicial se sobrepõe à observação mais cuidadosa do fenômeno estudado.

Creio mesmo que é o autor-cancionista que faz desaparecer dos escritos em pauta a sombra do psicanalista-detetive, tão comum nos seguidores de Freud, deixando apenas o investigador paciente que quer chegar a algum resultado com a ajuda do próprio investigado.

Assim, no estudo intitulado “Édipo e transferência a partir de Dora: um percurso em Freud”, dedicado às diversas etapas da carreira em que o pai da psicanálise focaliza a questão edipiana e o mecanismo da transferência, David Calderoni identifica, em cada uma delas, uma tensão entre os motivos da razão, no mais das vezes associados ao gesto de dominação e dissecação (pelo saber) dos impulsos primitivos e das manifestações emocionais (Édipo, transferência ou mesmo obras de arte) e os motivos do afeto que podem produzir o arrebatamento, a surpresa e o trabalho artístico, mas também o amor doentio e a neurose. Segundo o autor, só em fases afins ao fazer artístico, tal como por ocasião da análise de O Rei Lear, Freud consegue tirar proveito teórico dessa tensão entre os dois motivos sem culminar com o recalque das figuras operantes do afeto.

E é justamente iluminando essas últimas figuras que o autor passa à descrição do universo poético de Chico Buarque (“A pedra e a perda – feminino e temporalidade: notas a partir da escuta de ‘Você, você – uma canção edipiana’”) e Caetano Veloso (“O silêncio à luz de Caetano”), posicionando-se rente às letras examinadas. Sua estratégia de escrita é a constante indagação sobre os possíveis conteúdos do texto, lançada em meio às citações, de modo que perguntas e respostas emanem dos próprios versos. É a forma que encontra de conduzir seu raciocínio sem dispensar a cumplicidade dos compositores. Calderoni ainda aceita, nos dois textos, o temível desafio de aproximar obra e biografia dos letristas. No que se refere a Caetano, nada mais natural na medida em que ele próprio reconhece suas canções como autobiográficas. Mas Chico, como se sabe, considera seu universo imaginário artístico completamente apartado de vivência pessoal. Pode-se dizer que nada disso importa quando a análise beira o texto analisado e os depoimentos concedidos diretamente pelos artistas. Cabe ao psicanalista articular esses dados segundo os seus princípios teóricos, mantendo o cuidado e, muitas vezes, a dúvida em relação às próprias conclusões. Ambas as posturas fazem parte integrante deste livro.

A análise de “Você, você” pelo prisma edipiano sugerido no título da canção trouxe à tona a continuidade e a descontinuidade, aquelas que selam a relação entre os personagens narrativos, como matrizes de um tempo cujo fluxo ora queremos apressar para reduzir nossa espera, ora queremos interromper para preservar os vínculos primordiais. O enunciador da composição enxerga a mulher pelos olhos da criança que pressente, na despedida noturna da mãe, uma ameaça ao seu profundo elo amoroso (edipiano, segundo Chico). Os aspectos contínuo ou descontínuo do vínculo surgem então associados aos mesmos aspectos referentes à temporalidade.

O capítulo sobre Caetano é mais abrangente – e ambicioso. Contando com um livro autobiográfico (“Verdade Tropical”) para cotejar com letras que, de certo modo, possuem esse mesmo caráter, Calderoni examina o silêncio, cuja configuração poética no repertório do compositor se exprime como “a voz de uma luz”, e seu valor na prática psicanalítica. Nesse estudo, o recuo teórico, que em geral afasta o pesquisador de seu objeto de estudo, é praticamente eliminado. É como se o psicanalista entrasse em fusão com o artista. Difícil distinguir quem é sujeito e quem é objeto, pois a alternância é incessante. Mesmo as descobertas que só podem vir do autor deste volume parecem emergir dos textos do compositor, uma vez que só depreendemos o seu sentido a partir das aproximações – às vezes paralelas, às vezes seqüenciais – de trechos sugeridas pelo primeiro.

Entre os bons momentos do capítulo, Calderoni ainda arrisca uma hipótese de fato instigante para explicar os efeitos da música, linguagem que se define por criar internamente suas próprias referências, no âmago do sujeito. O seu poder poético facilitaria o reconhecimento dos conteúdos que transitam livremente entre as partes do universo subjetivo, bem como entre as partes e o todo desse mesmo universo. É bem verdade que o célebre conceito de função poética lançado por R. Jakobson já vislumbrava essas conexões entre partes da obra. No entanto, o lingüista jamais respondeu à indagação que hoje freqüenta os tratados de semiótica e que está presente no texto em exame: como se relacionam as saliências locais de uma obra de arte com o sentido global coextensivo à obra como um todo? A resposta a essa questão talvez ajudasse a explicar o fato de a música favorecer o desimpedimento das conexões “partes-todo” também no interior do sujeito.

Esses ensaios de Calderoni ainda se completam com um pequeno texto dedicado ao filme A Vida é Bela, de Roberto Benigni, escrito de maneira lírica e envolvida, e com estudos de ordem clínica e metodológica a respeito dos autores Bergeret, Minkowski, Sacks e Messas. Também nesses casos, a originalidade dos pontos de vista adotados certamente terá forte repercussão entre estudiosos do tema, psicanalistas, terapeutas e interessados de modo geral.

Contracapa

Por Cristiano Novaes de Rezende

Todas as coisas notáveis são tão difíceis quanto raras.

É com esta conhecida frase que Espinosa encerra sua obra magna, a Ética, reconhecendo que a via por ela aberta é árdua e exigente de grande labor. Entretanto, pouco antes desta conclusão, o filósofo insistira: essa via “pode ser encontrada e percorrida”.

Não é sem propósito evocar aqui, diante destes ensaios para uma ciência do singular, o célebre filósofo holandês do século XVII. Afinal, o notável a que ele se refere não é senão viver conforme certo modo de percepção, caracterizado justamente como “conhecimento das coisas singulares”, muito preferível ao “conhecimento universal”, especialmente no que concerne à constituição e à expressão de um psiquismo tão saudável quanto livre e de uma vida afetiva tão consistente quanto rica e complexa. Mas, sobretudo, tal evocação justifica-se porque Espi­­­­nosa qualifica expressamente esse gênero de conhecimento como scientia, exigindo que o percurso do pensamento pelo singular se diferencie de uma percepção que vaga por entre encontros fortuitos e associações acidentais, mas também, em contrapartida, que a própria cientificidade se diferencie da mera capacidade de administração classificatória do mundo – tecnicamente exitosa, mas governada por universais abstratos que tendem a encobrir e usurpar o lugar das coisas singulares na natureza.

É por certo desafiadora a expressão “ciência do singular”. Na antiguidade, com Aristóteles, a ciência fora caracterizada como conhecimento do universal. E contemporaneamente, na formulação paradigmática de Merleau-Ponty, a ciência foi dita “manipular as coisas sem habitá-las”. Conhecedor destes referenciais teóricos, David Calderoni procura trilhar, antes, uma via fortemente mobilizada pela leitura de Espinosa: ao invés de ceder o traço da cientificidade a esse gênero de conhecimento determinado pela lida externa com o objeto, o autor nos convida a uma sorte de correção intelectual e nos faz questionar se não é apenas uma ciência do singular que pode ser estimada como ciência propriamente dita. Ao invés de se constituir como olhar de sobrevôo em oposição ao olhar imanente do artista, o trabalho científico aqui empreendido compartilha com a criação artística a capacidade de proporcionar um modo peculiar de fruição e união com os objetos tratados, oferecendo ao leitor, simultaneamente, a clareza dos conceitos bem ordenados e a experiência afetiva de uma prazerosa compreensão.

Assim, ao abarcar conjuntamente escritos psicopatológicos e estético-críticos, a unidade destes ensaios não se fragmenta em esforços díspares nem amalgama inegáveis diferenças, mantendo-se coesa na exata medida em que revela, em cada caso, a singularidade de seus objetos e da abordagem que os acolhe. Trata-se, pois, de uma unidade tão mais consistente quanto menos se faz homogênea e indiferenciada. E nisso ressalta o caráter de um pensamento livre em sentido espinosano, isto é, “apto para a multiplicidade simultânea”. Havendo tomado a exigente via aberta por Espinosa, estes ensaios dão testemunho de sua viabilidade, permitindo compreender que uma ciência do singular não há de realizar-se como mais um cânone abstrato, novo acervo de modelos universais, nem como híbrido paradoxal de determinações contraditórias, mas sim como pensamento singular porque potente para a unidade do diverso.

 

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